*
Era uma dessas noites com hálito
frio que insiste em beijar a sua face e envolver o seu corpo. Passava das duas
da manhã. A única companhia que me restava era um dos meus inconfundíveis
cigarros de palha apagando várias vezes por causa do vento que vem do mar. Não
me parecia que mais nada de interessante pudesse acontecer naquela madrugada fria.
Mas, a vida surpreende. E esta cidade, também. E lá estava ela. Vinha
desfilando, como era a sua forma natural de caminhar, sobre as pedras meio
soltas da rua escura. Enchi novamente a taça de vinho, traguei forte; e fiquei
a esperar. Já se passaram cinco anos desde a última vez que estivemos,
voluntariamente, a sós em algum lugar. A sós, a gente não funciona muito bem,
não para os padrões sociais de nossa época. E certamente, devemos ter piorado um
bocado nesta meia década. Ela aproximou-se, me olhou, sorriu cinicamente,
sentou-se do meu lado, pediu um trago do cigarro, bebeu da minha taça. E disse:
- Já faz muito tempo.
- É... Faz sim.
- Estou querendo carona.
- Pode ser!
E caminhamos em silêncio até o
carro estacionado do outro lado da rua. Seguimos pela beira-mar. Conversamos
amenidades. Mas, era tenso o clima, e excitante a situação. Sempre soubemos que
somos feitos do mesmo material. Somos igualmente prejudiciais um para o outro.
Somos perigosos, porque nos conhecemos bem demais.
Ambos queriam revisitar as nossas
peles arrepiadas e inebriar-se nos nossos perfumes. Mas, quem ousaria tomar a
iniciativa? Quem daria o primeiro passo em direção ao precipício? Passaram-se
milênios em alguns minutos de silêncio e desejo. Ela resolveu aventurar-se:
- Vai me levar direto pra casa? Perguntou.
- Pra onde mais?
-Pra algum lugar mais
interessante, talvez?
- Sua casa não é interessante?
- Tem gente demais por lá.
-Tem um lugar que nós dois
conhecemos bem. Mas fica a duas horas de viagem daqui.
- Sei. Praia, manta, “fumaça
verde” ao som do mar...
- É... como em tempos passados.
- Tempos bons?
- Nem tanto. Tempos que já se
foram.
- Não podem voltar?
- Não. Não devem voltar.
O dia estava amanhecendo quando
chegamos à praia. Ela dormia no banco do carona. E no som do carro, tocava N.W.A.
Resolvi procurar alguma pousada para descansar.
Parei numa aconchegante pousada no alto de um morro com
vista privilegiada para o além mar. No quarto confortável e decorado com
quadros e artesanatos locais encontramos uma grande cama macia com dois
travesseiros de pena de ganso e lençóis limpos.
Ela, sonolenta, não pensou em dormir. Eu - que quase não durmo - não me
fiz de rogado. O dia amanheceu ao sabor de um Chardonnay e do agridoce paladar dela que se iluminara em gotas prateadas de um
passado à meia-luz.
**
Doze horas e quarenta e sete minutos marcava o relógio digital do meu
telefone celular, quando despertei. O som das ondas quebrando na praia podia ser
ouvido ao longe. Abri a janela do quarto e a luz ofuscou os meus olhos. Voltei
o olhar para a cama e não avistei o seu corpo, fui até o banheiro e ela também
não estava lá. Não vi sinal algum da sua presença. Talvez tivesse decidido
caminhar na praia como era o seu costume. Tomei um banho e sai para tentar
encontra-la na praia. Antes, perguntei na recepção se alguém a teria visto sair,
e fui informado que não. Percorri as ruas principais do lugarejo, observando
atentamente cada lanchonete e até mesmo os bares. Desci para a areia e caminhei
por toda a extensão da praia, passando por cada barraca ao longo do caminho.
Nada. Perguntei a alguns pescadores se tinham visto alguém com as suas
características e ouvi deles que sim, muito cedo, alguém com essa aparência
estava parada no alto do morro observando o mar. Decidi voltar para a pousada e
aguardar por ela.
***
A palha queima mais
lentamente e o fumo rende bem mais. A questão é que também queima com mais
dificuldade e apaga constantemente. É preciso certa destreza para manter aceso
o prazer. A brisa vem quente e torra as horas até que a tarde caia febril pela insolação.
Ela não veio. Contato algum. Ao retornar da praia, havia perguntado aos
funcionários da recepção se alguém teria procurado por mim na minha ausência?
Ninguém. Foi o que me responderam. A noite já vinha chegando. Decidi pagar a
pousada e partir. Antes, fui ver o sol se recolher por trás das dunas e levei
comigo um Malbec, dois maços de Souza Paiol e o “solto”
que me restara. O som do mar embalou pensamentos desencontrados e degustações
ininterruptas de êxtases compráveis. A noite se instalou, a lua veio, e as
sereias cantaram alto demais.
****
Pneus arrastando
queimam o asfalto, vidros se estilhaçam e o barulho é ensurdecedor. Acordo
subitamente e sem entender o que se passara. Abro a cortina e posso constatar,
do alto do segundo piso, que um acidente interrompera o trafego na avenida em
frente. Minha cabeça dói. A realidade da vez toma conta da minha bagunçada
consciência. Como é que eu vim parar aqui? Estou em casa. Começo a procurar na
memória, a noite que passou. Não encontro nada. Tenho uma vaga lembrança de que
estive com ela na praia. Impossível! Grita-me o bom senso. Talvez eu tenha
apenas sonhado. Um delírio, uma passagem por alguma dessas muitas realidades alternativas
onde a felicidade, se não fica, pelo menos flerta – entre o bálsamo e a
perversidade – comigo, e com o que ainda resta de sonho em mim.
DJ de S.
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